Qual a importância da classificação de Carpentier na cirurgia da valva mitral?
Atualizado: 15 de fev.
No post anterior, foi apresentado um resumo sobre a insuficiência mitral, contendo várias informações importantes, incluindo uma tabela referente à classificação de Carpentier para a insuficiência mitral (IM).
Os objetivos deste artigo são: detalhar a classificação de Carpentier; destacar a importância dessa classificação para o cirurgião; e demonstrar como ela auxilia na escolha da técnica cirúrgica mais apropriada para cada tipo de IM.
Quando se trata de insuficiência mitral, é importante considerar não apenas os folhetos para manter a válvula funcionando adequadamente. Fisiopatologicamente, o anel atrioventricular esquerdo ou anel mitral, as cordoalhas tendíneas e o músculo papilar/ventrículo esquerdo também desempenham papéis importantes na manutenção da função da mitral. Alterações nessas estruturas, como será discutido, podem afetar a função valvar, resultando em regurgitação.
A classificação de Carpentier propõe dividir as formas de insuficiência mitral de acordo com o provável substrato fisiopatológico e etiológico. Assim, compreendendo o mecanismo que está gerando a insuficiência mitral - o substrato anatômico e funcional - o cirurgião poderá escolher a técnica cirúrgica mais apropriada para o paciente.
Alain Frédéric Carpentier foi o notável cirurgião cardíaco francês que desenvolveu a classificação que leva o seu nome. Carpentier dividiu os mecanismos de insuficiência mitral em três tipos, sendo que o terceiro grupo é subdividido em outros dois.
Carpentier Tipo I
Nesses casos de IM, os folhetos da mitral possuem mobilidade, tamanho e espessura normais.
É Importante enfatizar que a valva não possui problemas de mobilidade. Na realidade, o problema encontra-se diretamente nos folhetos (perfurados ou com Cleft/fendas) ou no anel da mitral.
Fisiopatologia
Endocardite com perfuração do folheto mitral
Clefts na valva - Clefts são fendas que a mitral pode possuir. Geralmente é congênito.
Estratégia cirúrgica para o Tipo I
Nos casos Cleft ou endocardite (perfuração no folheto) a plastia pode ser direcionada para o local específico onde existe a lesão. Abaixo segue imagens de possíveis técnicas.
Técnica de plastia mitral para os casos de endocardite do anel e folheto valvar
Técnica cirúrgica usada para os casos de Cleft valvar mitral. Devemos lembrar que esse tipo de defeito é muito comum nos pacientes com Defeito de septo atrioventricular.
Carpentier tipo II
Nestes casos, os folhetos possuem mobilidade excessiva gerando prolapso da valva mitral
A mobilidade excessiva pode serpor conta da redundância dos folhetos ou alargamento/ruptura das cordoalhas tendíneas. Ou seja, o problema pode estar na valva, assim como também no seu aparato subvalvar (cordas tendíneas)
Fisiopatologia
Degeneração mixomatosa
é a principal causa de insuficiência mitral primária (a doença está primariamente na valva ou no seu aparato).
O espectro da degeneração mixomatosa vai de deficiência fibroelástica da valva, com folhetos finos e prolapso focal, até a doença de Barlow, com folhetos difusamente espessados e redundantes.
Observem na imagem A a cordoalha rompida e o prolapso do folheto posterior (P2). Esse achado é bastante frequente na degeneração mixomatosa. Na imagem B, por sua vez, temos o prolapso do folheto anterior.
Estratégia cirúrgica para o tipo II
A estratégia cirúrgica para doença degenerativa da valva mitral segue os seguintes princípios:
Reestabelecer uma boa superfície de coaptação entre os folhetos
Para isso pode-se lançar mão de diversas técnicas como ressecção que colocarei na galeria abaixo.
Correção da dilatação anular
Para a anuloplastia, geralmente é implantado um anel rígido (ver imagens abaixo)
A técnica aplicada é muito variável e dependente da análise global da anatomia valvar, levando em conta a integridade dos folhetos e seus segmentos, e do aparato subvalvar (cordoalhas e papilares).
Abaixo segue uma imagem didática de algumas técnicas que podem ser aplicadas para insuficiencia mitral primária tipo II.
Uma das técnicas mais aplicadas é a ressecção quadrangular ou triangular do segmento médio do folheto posterior (P2) - local responsável por aproximadamente 70% das regurgitações mixomatosas. Por sua vez, o uso de Neocordas é um dos pilares da plastia valvar realizada pelo professor Manoel Antunes.
Carpentier Tipo III
Nessa forma de insuficiencia mitral, haverá restrição da mobilidade dos folhetos sendo subdivido em dois subtipos:
Subtipo IIIA
Nesse subtipo a retração se dará por lesão direta nos folhetos e cordoalhas.
Um exemplo comum em nosso meio são os pacientes com febre reumática que devido a lesões auto-imune sucessivas na região da valva mitral, acabam desenvolvendo calcificação, espessamento, retração e fusão dos folhetos e cordoalhas resultando em IM. Na realidade, na maior parte das vezes a lesão reumática provoca dupla lesão (insuficiência e estenose), sendo a IM isolada frequente nos casos de surto agudo de febre reumática.
Em muitos casos de doença reumática a valva fica tão danificada que não é possível preservá-la. Nesses casos extremos, a melhor estratégia é realizar a substituição da valva por uma prótese.
Subtipo IIIB
Nesse caso a restrição da mobilidade das cúspides se dará devido a um tensionamento excessivo das cordoalhas tendíneas. Isso ocorre em condições onde o ventrículo esquerdo encontra-se dilatado, deslocando o músculo papilar e consequentemente as cordoalhas e cúspides.
Estratégia cirúrgica para o tipo III B
Nesses casos, como se trata de uma insuficiência mitral secundária (pois o problema não encontra-se primariamente na valva e sim no músculo cardíaco) o beneficio da cirurgia é incerto, tendo um nível de evidência e recomendação menor quando comparado a IM primária.
Mais incerto ainda é a técnica que devemos usar para esses casos. Um Trabalho publicado em 2014 por Acker MA , comparou plastia versus implante de prótese. O resultado demonstrou que plastia mitral nos casos de IM secundária a cardiomiopatia isquêmica, obteve uma taxa de recorrência de IM moderada ou aos 12 meses maior do que o grupo da troca valvar (32,6% vs. 2,3%, P <0,001).
Apesar dos desfechos duros terem sido iguais entre os grupos ao final de 12 meses, o trabalho mostrou que a plastia é arriscada, possuindo um índice de regurgitação bem maior quando comparado ao implante de prótese.
Take-home messages:
Classificação de Carpentier fornece o substrato anatômico e etiológico da IM
Conforme a classificação, podemos escolher a técnica cirúrgica mais apropriada
A plastia é quase sempre melhor que o implante de prótese mitral, mas é questionável nos casos se IM secundária à cardiomiopatia isquêmica. Nesses casos, a plastia tem taxa maior IM moderada a grave no pós-operatório significativamente maior.
Referências:
JACC Cardiovasc Imaging. 2018 Apr;11(4):628-643. doi: 10.1016/j.jcmg.2018.01.009.
Ann Thorac Surg 1998;66:1551–9
Rev Esp Cardiol. 2011;64:1169-81 - Vol. 64 Num.12 DOI: 10.1016/j.rec.2011.06.023
N Engl J Med. 2014 Jan 2;370(1):23-32. doi: 10.1056/NEJMoa1312808. Epub 2013 Nov 18.
doi: 10.21037/acs.2016.11.03
https://cardiopapers.com.br/ja-ouviu-falar-na-classificacao-de-carpentier-para-insuficiencia-mitral/