Anatomia cirúrgica da valva aórtica: conceitos práticos e armadilhas cirúrgicas.
Atualizado: 24 de mar.
A anatomia cirúrgica da valva aórtica não é tão simples como imaginamos. É fundamental para o cirurgião cardiovascular ter conhecimento profundo não apenas da valva e seu anel, mas também das estruturas que os circundam.
Nessa postagem, o objetivo principal é mostrar as bases da anatomia cirúrgica da valva aórtica e das principais estruturas relacionadas, que são relevantes para o cirurgião cardiovascular, fazendo um paralelo com conceitos práticos.
VALVA AÓRTICA
Valva aórtica é composta por 3 folhetos ou válvulas:
Anterior ou coronariano direito
Posterior esquerdo ou coronariano esquerdo
Posterior direto ou não coronariano
Imagem do livro Khonsari mostrando como é feito aortotomia oblíqua para exposição da valva aórtica.
Pode parecer óbvio, mas a valva aórtica nem sempre é tricúspide, podendo ser bicúspide, quadricúspide ou até mesmo monocúspide. Para o cirurgião, saber quantas válvulas a valva aórtica tem é importante, pois pode mudar a conduta em alguns casos. O grande exemplo é o paciente que possui valva bicúspide e ectasia ou aneurisma da aorta. Sabemos que o ponto de corte para trocar a raiz da aorta e/ou aorta ascendente pode ser menor em paciente com valva bicúspide, tendo em vista que esses doentes possuem risco maior de evoluir com aneurisma e complicações decorrentes da dilatação aórtica.
Clique na imagem para ampliar
ANEL AÓRTICO
Há 03 formas que o cirurgião cardiovascular pode analisar e estudar o anel valvar aórtico.
1. Anel anatômico
Anatomicamente, o anel aórtico faz parte do esqueleto fibroso do coração possuindo uma forma de coroa.
Do ponto de vista prático, essa região deve ser polpada nas cirurgias onde é necessário substituir a raiz da aorta, preservando a valva e seu anel.
As três formas de estudar o anel valvar aórtico. Em vermelho na figura, em forma de coroa, é o anel anatômico que faz parte do esqueleto fibroso do coração. Em amarelo, o anel sob a visão do cirurgião sendo o local próximo a junção ventrículo-arterial. Por fim, em verde, o anel virtual.
Fonte da Imagem: referência 05.
2. Anel cirúrgico
É o anel que o cirurgião cardíaco foca no intraoperatório, correspondendo ao local de junção do ventrículo esquerdo com a aorta (junção ventrículo-arterial).
Usualmente, é no anel cirúrgico aórtico onde o cirurgião passa os pontos para implantar a prótese valvar.
No pré-operatório, importância deve ser dada ao tamanho (diâmetro) do anel cirúrgico (presumido pelo ecocardiograma) pois, quando pequeno, pode ser um fator importante para a estratégia operatória (clique aqui e leia nossa análise sobre anel aórtico pequeno).
Estevan Letti, Cirurgião Cardiovascular da Santa Casa de Porto Alegre, realizando troca valvar aórtica por miniesternotomia. Observem que a sutura está sendo realizada no anel valvar aórtico cirúrgico, correspondendo a junção ventrículo-aórtica.
Imagem do Khonsari mostrando os pontos que são feitos no anel cirúrgico para implante da prótese valvar
Imagem de uma troca valvar aórtica realizada no serviço do Professor José Wanderley Neto. Observem os pontos de Ethibond fixados no anel aórtico cirúrgico.
3. Anel virtual ou anel da imagem
Como o nome anuncia, o anel virtual não existe como realidade, mas sim como faculdade de estudo dos exames de imagem (tomografia, ressonância e ecocardiograma). Ele corresponde a região de fixação basal do três folhetos da valva aórtica, sendo uma referência bastante utilizado nos procedimentos transcateter.
Imagem mostrando cortes de tomografia e ecocardiograma delimitando o anel aórtico virtual.
Fonte da imagem: referência 05
RELAÇÕES ANATÔMICAS E ARMADILHAS CIRÚRGICAS
Cortina mitro-aórtica ou cortina subaórtica
A cortina mitro-aórtica é o ponto de continuidade do anel mitral anterior com o anel aórtico, sendo essa relação muito tênue. Passar um ponto mais profundo nessa região durante a troca valvar aórtica pode causar plicatura do folheto anterior da valva mitral e consequentemente insuficiência mitral aguda nos pós-operatório.
Na cirurgia de implante de prótese mitral, devemos ter o mesmo cuidado ao passar os pontos na região da cortina mitro-aórtica mas dessa vez a consequência será a plicatura da valva aórtica e insuficiência aórtica aguda (Veja a postagem sobre anatomia cirúrgica da valva mitral).
Observem nas imagens que a valva mitral tem relação íntima com a valva aórtica. Na imagem em preto e branco, retirada do livro do Khonsari, percebe-se a valva mitral na região do anel aórtico, que fica por volta das 6-9 horas na visão do cirurgião, tendo relação principalmente com o folheto não coronariano.
Pontos comissurais e Sistema de condução
A importância dos pontos comissurais é que o sistema de condução elétrico do coração passa na região intercomissural das cúspides não coronariana e coronariana direita. Pontos muito profundos nessa região podem atingir diretamente o nó atrioventricular e, consequentemente, gerar bloqueio atrioventricular total (BAVT).
Observem as relação anatômicas do sistema de condução com a valva e anel aórtico.
Fonte da imagem: referência 01.
Mais uma imagem do Khonsari demonstrando lesão inadvertida do sistema de condução. Pontos muito profundos no anel aórtico, na região próxima da comissura dos folhetos coronarianos direito e não coronariano, podem causar BAVT por lesão direta no nó átrio-ventricular.
Óstios coronarianos
Os óstios coronarianos, situados nos seios de valsava (estruturas semicirculares da raiz da aorta que comporta o sangue na diástole) tem relação muito próxima com o anel valvar. Exames de imagem como tomografia, cateterismo e ecocardiograma podem ajudar a topografar os óstios coronarianos.
O cirurgião deve estudar no pré-operatório de troca valvar aórtica a localização dos óstios.
Deve-se ficar sempre atento quando os óstios coronarianos são muito baixos. Pacientes que irão realizar troca valvar aórtica convencional e possuírem óstios coronarianos muito baixos em relação ao anel aórtico cirúrgico, há um risco muito maior de serem obstruídos pela estrutura da prótese. Obviamente, o cirurgião também deve ter cuidado para não suturar alto os pontos que irão ancorar a prótese. A idéia é evitar que a prótese fique no mesmo plano dos óstios e acabe por obstruí-los completamente. É fácil deduzir a consequência dessa complicação: infarto agudo do miocárdio!
A altura do óstio também é importante para o cirurgião que irá realizar uma implante de valva aórtica transcateter (TAVI). Quando os óstios coronarianos possuem uma altura baixa (< 12 mm) em relação ao anel aórtico virtual existirá um maior risco de oclusão pela prótese após o implante via cateter.
Deve-se também observar no pré-operatório se os óstios coronarianos possuem origem anômala ou são muito altos, para não provocar lesão inadvertida durante a aortotomia.
Imagem retirada da referência número 06. Notem a relação entre o óstio coronariano esquerdo, o anel valvar aórtico e os pontos de sutura.
Em suma
A valva aórtica é tricúspide...mas nem sempre (pode ser mono, bi, tri ou quadricúspide)
O anel aórtico pode ser descrito de 03 formas:
1. Anel anatômico
2. Anel Cirúrgico
3. Anel Virtual
As principais armadilhas anatômicas são:
A Cortina mitro-aórtica
O Sistema de condução
Os óstios coronarianos
Tendo em vista os aspectos observados na presente análise, se o fino leitor preferir o conteúdo em vídeo, dispomos da videoaula "Anatomia cirúrgica da valva aórtica: conceitos práticos e armadilhas cirúrgicas" (assista abaixo).
Referências:
Anderson RH. The surgical anatomy of the aortic root, in: Multimedia Manual of Cardiothoracic Surgery, doi:10.1510/ mmcts. 2006.002527
Anatomy and Function of Normal Aortic Valvular Complex 55 http://dx.doi.org/10.5772/53403
Interventional Cardiology Review 2015;10(2):94–7
Khonsari, Cardiac Surgery. Safeguards and Pitfalls in Operative Technique 5 ed. Philadelphia 2017.
Circulation. 2019;139:2685–2702. DOI: 10.1161/CIRCULATIONAHA.118.038408
Cardiac Surgery: Operative Technique, 2ND Edition ISBN: 978-1-4160-3653-1