Crônicas Cirúrgicas: O cemitério do cirurgião
Na série "Crônicas Cirúrgicas", o objetivo é revelar o lado humano da vida de um cirurgião: o que ele sente, enfrenta e carrega além das questões técnicas. Não há como separar o ser técnico do ser humano; ambos coexistem no centro da ação. Para ser um bom técnico, é preciso, antes de tudo, amar a vida e ser um bom ser humano. Aqui, compartilho essas reflexões e emoções que vão além do bisturi.
O medo da morte.
Dizem, alguém já disse,E continuam a dizer:
Que o cirurgião tem o seu cemitério.
São os pacientes que morrem,
E a gente sempre vai lembrar de suas faces.
Não tem jeito.
O cemitério do cirurgião
Representa todos aqueles
Que morrem durante o tratamento cirúrgico,
E o cirurgião sempre vai lembrar de suas faces.
Quanto mais próximo você é do paciente,
Maior a chance de lembrar de seu rosto.
Talvez pior do que o cemitério seja o processo,
Porque o cemitério é o fim.
É o que já aconteceu,
É o resultado.
Mas... o processo é diferente.
O processo é o que leva o paciente ao cemitério.
A angústia, a dor, a frustração
De sentir que o paciente está indo a óbito
E que você não tem nada a fazer.
Esse momento, às vezes, se estende por dias.
Ou pior,
Ele acontece na mesa de cirurgia.
E eu acho que esse é o pior momento,
Essa é a maior angústia:
Quando o paciente morre na mesa de cirurgia.
Claro, dá para viver com o cemitério.
Sim, é óbvio que dá.
Mas ele não sai da sua cabeça.
E toda vez que algum paciente morre,
Esse cemitério vem à tona.
Ele é reacendido, inflamado,
E você começa a se lembrar
De todos aqueles que não sobreviveram à cirurgia.
E então?
O que fazer?
Vale a pena parar?
Surge a frustração
E a vontade de parar de operar.
Eu tenho essa opção, talvez.
Por que não?
A gente sempre tem uma opção.
Poderia seguir outra carreira,
Fazer clínica de cardiologia.
Porque, como cirurgião cardiovascular,
Você é cardiologia.
Então, por que não seguir a carreira de cardiologia?
Sei lá, até fora da medicina, talvez.
Mas o que eu poderia fazer fora da medicina?
O que fazer, na verdade,
Quando eu só amo,
Só gosto,
Só tenho prazer em operar?
Poderia até ser clínico,
Mas eu gosto mesmo de operar.
Então, eu não vou ser clínico.
O problema é o cemitério.
E o que fazer com o cemitério?
Eu não sei.
Continuar.
Ah, na próxima vez, vou fazer melhor, mas...
Sempre penso isso.
O problema é que há pacientes
Em que não há como fazer melhor:
Dissecções complexas,
Insuficiência ventricular grave,
Cardiopatias congênitas complexas,
Risco cirúrgico já alto.
Conviver com isso
De novo
E de novo.
Eu poderia ser clínico.
Mas já concluí que clínico não dá.
Eu gosto mesmo de cirurgia.
Mas o que fazer?
Eu não queria ter esse cemitério.
Eu não queria ver o cemitério aumentar.
Eu sou cirurgião.
Sobre o autor:
Fernando de Assis Machado é um cirurgião e escritor de crônicas luso-brasileiro, conhecido por seus relatos sobre a vida cirúrgica que vão além do bisturi. Seus textos buscam revelar o lado humano da profissão, explorando o que um cirurgião sente, enfrenta e carrega além das questões técnicas. Ele destaca que não é possível separar o ser técnico do ser humano; ambos coexistem no centro da ação. Para Fernando, ser um bom técnico exige, antes de tudo, amar a vida e ser um bom ser humano.
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